quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Zeus deve lavar banheiro

Aristóteles dizia que excelente é o exercício do que temos de melhor. O homem, então, é excelente se pensar melhor, porque é o que o distingue dos animais. É por ele ter razão que a mulher não tem obrigação de passar a camisa do homem. Distinguir o homem da mulher, elevando-o sobre ela, é usar critério falho: que alguém é melhor por ser fisicamente mais vigoroso. Entre humanos, melhor é quem pensa melhor. E o gênero não define a qualidade do pensamento.
Errado estava Homero, que já descrevia Hera, mulher de Zeus, submissa a ele. Percebe-se aqui: "Senta-te agora; sossega e reflete bem nisso que digo. Nem mesmo todos os deuses do Olimpo valer-te puderam, se minhas mãos invencíveis em ti suceder que se abatam".
Pelo oposto vai minha interpretação de Aristóteles: ele já sabia do dever de lavar as panelas após o jantar. Da briga literária dos sábios, uma coisa é certa. A submissão dos homens e mulheres só existe se mútua: um diz meu bem; o outro responde igualmente, com um beijo, ou chamando, sem obediência, de meu amor.

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Chuva

Chuva do meu berço
Por que de ti gosto, desconheço
Mas a tua cinza cor me satisfaz
Tua melancolia me seduz o corpo
E sinto a pele, vestindo a pele
Buscando o calor levado por ti
Me sinto nublado por te obedecer
Mas não é tristeza o meu cobertor
Chamo o abraço por causa do teu frio
Dos teus trovões busco descobrir
Aqui de casa, de ti recolhido
A razão por gostar de ti
Mas tu, calada e sem timidez
Esbraveja sem dizer palavra
Dando à luta que tenho só a fotografia
É da minha mãe, que em casa ficava
E de beijos enchia meu rosto
É pela lembrança, chuva, que tens o meu amor

sábado, 6 de setembro de 2014

Viver não é a pressa

O tempo é moderno e há frases velhas, que não merecem ser repetidas, porque... caducaram. "A pressa é inimiga da perfeição" está desatualizada. Como um gadget, precisa de update. É o seguinte: a pressa é inimiga da compaixão.
Tenho lido sobre a banalidade do mal, descrita por Hannah Arendt, e combinado a filosofia dela com pouco de estudo de psicologia do comportamento médico nos EUA.
Pacientes não são enfermos, mas consumidores. Não têm nomes, mas códigos. Não é muito diferente do que acontecia com o nazismo: os judeus eram batizados com sequências de números burocráticos que tinham a finalidade de matar antecipadamente, com o adiantamento da crueldade.
Um dos braços direitos de Hitler nunca melou as mãos de sangue. Ficava em seu gabinete, provavelmente bebendo uísque de melhor qualidade. Mas era o responsável pelo funcionamento da engrenagem assassina de Auschwitz. Historicamente, sabe-se que ele afirmava agir como determinavam a lei e o Estado que vigoravam à época: não havia maldade porque ele só cumpria ordens.
Com a indústria médica, não parece ser muito diferente. É claro que há exceção, mas as estatísticas em que tenho passado os olhos demonstram que médicos apenas seguem as regras do mercado: não há mal algum em não ter compaixão com os pacientes, se obedecem o mandamento de que tempo é dinheiro, a vida é assim e dessa forma tudo fica explicado.
A banalidade do mal é não perceber que a nossa conduta impõe a dor de muita gente, ou a aceita, sem reflexão. É fazer o mal, não exatamente por criá-lo diretamente, mas por não estar preocupado se ele é consequência dos nossos atos.
Nesse norte, é o mal configurado pela pressa de satisfazer determinada burocracia que, no final das contas, pagará o nosso salário. Há pouco tempo para satisfazer os nossos desejos individuais: por que deveríamos preocuparmo-nos com os outros, mais fracos, que não têm o nosso vigor?
Minha crença tem sido construída pelos meus estudos. Mas não tenho lido sem direção. Parto da pergunta: qual é a forma mais justa e correta de viver? Acontece que, quanto mais vivo, e estudo, percebo que viver apressadamente é um belo modo de construir o caráter de um imbecil.
A vontade que temos de construir o nosso individualismo, e reforçá-lo, é tão grande como é a natureza da nossa vaidade. Mas temos outra característica inata: é pensar que, possivelmente, existe algo maior que nosso umbigo.
Possuímos a faculdade de pensar e devemos usar nosso escritório para isso. Embora a atividade mental imponha o uso do tempo, é o que nos permite descobrir que a nossa atividade profissional não é mero exercício de números, mas o que nos permite fazer o bem. Viver refletindo sobre nossa conduta é perceber que, diante da existência do sofrimento e da certeza da morte, a pressa perde o valor.

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Ela nasceu

Não existe apenas um cordão umbilical. Há o mais famoso: o de carne, que perdemos ao nascer. Mas ser filho é ter outro. É o cordão invisível que nos prende à mãe: o da alma.
É triste, mas só percebemos a existência do último quando a perdemos. Por isso eu peço: não duvide de quem já perdeu. Não espere para ter certeza. Dou garantia: ele existe.
Ao perder o grande amor sentimos um vazio; sensação de que fomos roubados - violentamente. E fomos: cortaram o nosso último cordão.
Perdê-la é, de alguma maneira, tornar-se livre. Mas a vontade que dá é pedir o retorno da prisão. É mentira que homem nasce para a liberdade. Lugar algum é melhor que os cercos do colo da mãe, que é família, fortaleza inteira.
Para quem ainda a tem, viver deve ser beijá-la: de manhã, de tarde, à noite. Vale acordar, também, de madrugada. Morte é salteador eficiente; nunca se sabe quando pula nossa janela.
Mas para quem já sofreu o crime mais doloso, o conforto é o espelho: vê-la em si. Teus olhos são os dela, como a pele e a vontade. Se ela cuidou, cuidarás também. Porque se ela era tudo, torna-te uma mãe para o mundo: deve haver outros cordões em ti.

segunda-feira, 1 de setembro de 2014