segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

A Mesa de Jardim

(Herbert List)

Morava em um apartamento e nunca tinha ido à varanda. Depois da primeira vez, não queria mais sair dali. Uma sombra, agradável local pra ler. Até o som dos carros na rua trazia o desejo pela poltrona e café. O lugar trazia humor. 

Hoje moro em uma casa. Há seis meses, acho. Nunca tinha vindo ao jardim, com intenção de descansar. Mas é pra isso que um quintal serve! Com essa conclusão em mente, comprei uma mesa desejosa de grama, casada com uma cadeira de ferro. 

E como minha cabeça se apega fácil ao absurdo! Depois de ler os primeiros parágrafos perto das plantas que crescem em casa, pensei: se houvesse uma grande crise e me tirassem tudo que tenho, talvez eu ficasse feliz se permitissem a manutenção de algumas poucas coisas.

A mesa de jardim e seu par. Um clima que não impusesse o suor ou o recolhimento ao teto. Um modo de garantir acesso permanente aos livros que desejasse. Um rádio, com boa sintonia. Os grãos trazidos da colheita em tom acerejado... De resto, a necessidade da sobrevivência, sem palpites do luxo.

Talvez fosse um modelo de vida agradável. Mas a correria do mundo, com sua constante cobrança, em nome da imposição de uma felicidade maquiada, bate à porta. Um homem de terno e gravata. Óculos, escondendo olhar de vidro. Ele ergue o braço, na linha da cintura, mostra o tempo pendurado no pulso. É a hora da minha paz, que acaba com a mesa de jardim desmontada. 

sábado, 16 de fevereiro de 2013

O Julgamento

(Guy Le Querrec)


Aquele ali é um homem vazio! Depois desse julgamento, feito por um estranho que passava na calçada, a vida de Antônio nunca mais foi a mesma. Há cinquenta e quatro anos, ninguém sorria pra ele. 

Vez havia que parava em seu sofá, mas não descobria as razões de sua fortuna. Nenhum vizinho contou, pelo outro lado das paredes, telefone ou carta enviada. As pessoas temiam um tipo de contágio e mantinham distância. 

O delegado chegou a ensaiar uma obra. Motivado pelo povo, traçou os planos em sua mesa. Mas nada deu certo. Os policiais se recusavam a chegar perto daquela casa. A população cedeu, porque covarde. Restava pedir aos céus que a casa de Antônio sofresse a escolha de um desastre. 

Deuses não deram ouvidos. Um intelectual até chegou a dizer que Deus serve pra roubar nossas esperanças, só pra seguirmos leves pelo caminho da morte. O dono do bar retrucou. Disse do outro lado do balcão que Antônio morreria de fome, porque há muito não saia à feira. Nem ninguém entregava comida. 

Assim aconteceu. Caiu o seu esqueleto na sala. Outro problema social: quem haveria de enterrá-lo? Mas não houve tempo para o mau cheiro. Por sorte, o coveiro da cidade era a única pessoa estranha dali. 

Ele tinha gosto pelo ofício, acima de tudo. Buscou o corpo logo que soube, como prêmio conquistado. Jogou no túnel cavado. Preencheu Antônio de terra e descansou sua pá no ombro. Ainda nesse dia, o coveiro, ao voltar da jornada, tornou-se rei. Para aquele povo, ele era o único capaz de preencher alguém com vida.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

O Doutor do Plantão



(Jacob Aue Sobol)

Um colega me disse que iria fazer medicina, porque o plantão paga bem. Esse é o tipo de pessoa que corre para fazer a matrícula em uma faculdade particular, guardadas as exceções. Sem fiscalização, qualquer vagabundo passa no vestibular. Está acontecendo com o curso de medicina o que aconteceu com o de Direito: mais faculdades que lanchonetes e farmácias na cidade. A angústia dos pacientes não tem emocionado muitos dos nossos anjos da ciência. 

Tenho medo dessa situação. Daqui a alguns anos, eu precisarei de cuidados médicos. Meus filhos precisarão. E quem cuidará de nós? Alguém preocupado com o quanto ganhará no plantão. Esse tipo de gente não está interessado em curar, mas em engordar os bolsos no final do mês.

Aliás, não é um problema exclusivo do futuro. Há alguns dias conversei com uma médica e ela narrou a situação dos hospitais de Recife. Entre os médicos há um acordo: se um familiar adoecer, ligue pra um médico amigo, pra saber quem está na UTI de determinada unidade. Ligue pra consultar qual é o hospital confiável, naquele momento, para levar um enfermo. E quem não tem esse conhecimento? Leva a qualquer lugar e fica à mercê de um “doutor de pontos”. 

Hoje de manhã eu dei continuidade à leitura da obra de Bauman. Em um de seus livros ele disse algo que me acalmou. Não porque me apresentou uma solução. Mas porque mostrou que minhas conclusões não são absurdas. As pessoas estão preocupadas com a administração do individualismo e se afastam das reflexões morais. 

Médicos preocupados com suas férias em Dubai. Juízes preocupados com o financiamento do seu utilitário esportivo. Engenheiros apreensivos com os juros do empréstimo imobiliário. Os profissionais estão preocupados em “bater o ponto”. É como um administrador do holocausto. De manhã, tortura. À noite, conta histórias de amor aos filhos. 

Eu respondi ao meu colega que ele não deve ter o dinheiro como principal motivação pra escolha de uma profissão. Claro que não fui ouvido. Hoje em dia esse conselho é uma instrução aos ventos. Passa por todos os lugares, mas não aterrissa no senso de moralidade.